Crianças no Ceará com microcefalia estão há meses sem leite, medicamentos e tratamentos de rotina
esmo em casos de determinação judicial, recebimentos foram descontinuados ou ocorrem de forma irregular. Segundo mães, pandemia agravou problema
Sem condições de trabalhar porque tem que cuidar de Ruan, Nathalya recorre somente ao auxílio emergencial e à ajuda financeira de familiares, quando possível.
“Desde quando começou a pandemia, tudo piorou. Só foi bom no começo quando as crianças nasceram e a gente era bem assistida. São muitas mães que passam pela mesma situação. A gente se sente abandonada”.
Ruan Guilherme faz uso frequente de medicamentos para evitar refluxo como Domperidona e Ranitidina, além do anticonvulsivante Depakene. Mas nem sempre há unidades disponíveis na Policlínica do Jangurussu, bairro onde a família mora.
É um custo muito alto ter uma criança com necessidades especiais. E a gente fica desesperado porque a pior coisa que tem na vida é você não ter condições de dar o que o seu filho precisa”NATHALYA EDLA ALMEIDAMãe de Ruan Guilherme
Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou que “o suplemento Fortini e o medicamento Sabril estão em fase de aquisição”, porém não definiu o prazo para que essa entrega ocorra. A reportagem também questionou sobre a entrega irregular de fraldas para as crianças e como essas mães vêm sendo assistidas durante a pandemia, mas não obteve resposta.
PANDEMIA PREJUDICA DESENVOLVIMENTO DAS CRIANÇAS
Morando em Apuiarés, na Região Norte do Ceará, Eliene Costa, 38, se revela preocupada com o desenvolvimento motor da filha. A princípio, Victória, de 5 anos, ficou internada durante algum tempo, e quando recebeu alta, a pandemia começou. Por isso, está há praticamente dois anos sem fisioterapia.
Até os dois anos, a menina fazia fisioterapia duas vezes por semana em Caucaia, na RMF. Mas essa era a idade máxima permitida. ”Ainda não encontrei [outro] lugar pra ela fazer. Aqui no meu interior tinha fisioterapia, mas agora não [tem mais] porque só estavam atendendo as pessoas com Covid”.
Sem fisioterapia e fonoaudiologia, a mãe nota retrocessos no desenvolvimento da criança. “Fica cada vez pior porque ela vai atrofiando, os músculos vão ficando muito duros. A gente faz uma massagem, mas não é como a fisioterapia mesmo, né?! Isso está prejudicando demais [a Vitória]”.
Ciente da saúde mais frágil da filha e de sua maior vulnerabilidade diante do coronavírus, Luciana Martins Arrais preferiu dar uma pausa no tratamento de Ana Lis, antes realizado em Fortaleza duas vezes por semana.
A menina, hoje com cinco anos e três meses, mora em Apuiarés e está sem terapias há mais de um ano. “O município está fornecendo transporte pra fazer esse traslado até a Capital, mas devido à pandemia eu não tinha coragem de tirar a minha filha de dentro de casa pra ir pra Capital, o foco [de transmissão do vírus]. E isso está acontecendo com muitas mães”.
O problema, soma, é que não há terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo disponíveis para atender na sua cidade. “Eu tento falar com os médicos dela por telefone. Se aqui tivesse [esses profissionais], era muito mais fácil me movimentar aqui dentro do que ir pra Capital”.
Neurologista infantil no Hospital Infantil Albert Sabin (Hias), André Luiz Santos Pessoa confirma que a estagnação nas terapias prejudica diretamente o desenvolvimento das crianças acometidas pela Síndrome Congênita do Zika Vírus. Tenham elas microcefalia ou não.
Do ponto de vista neurocientífico, é óbvio que a gente tem a janela de oportunidade da neuroplasticidade. Então, principalmente nos primeiros mil dias, nos seis anos de idade, você tem um período muito especial de estimulação precoce, onde tem muita recuperação. Então, provavelmente, seria um período da vida em que, quanto mais cedo, maior capacidade de resposta às terapias”ANDRÉ LUIZ SANTOS PESSOANeurologista infantil
TERAPIA ONLINE PODE AMENIZAR PROBLEMAS
Conforme o médico, a pandemia montou um “cenário realmente preocupante”. A falta de avaliação médica, de tratamentos ou mesmo o adiamento de cirurgias podem acentuar problemas de saúde.
“Além da questão do desenvolvimento neuropsicomotor, da diminuição da estimulação, do enclausuramento, do abuso de eletrônicos, também tem as complicações ósteo-articulares, com muito encurtamento, escoliose, luxações de quadril e complicações ortopédicas”.
Para atenuar esses impactos, indica, as famílias podem recorrer às terapias online. “Não é a mesma coisa, mas numa situação que seria inviável as atividades presenciais, o online poderia” ser uma solução. “Mas teria que reproduzir com a criança em casa o que é orientado à distância. É uma dica tentar, dentro do possível, ter algum acompanhamento, nem que seja online”.
GARANTIA DE DIREITOS BÁSICOS
Além de mãe, Luciana é conselheira da Associação Filhos de Bênção (AFB) no Ceará, instituição que reúne pais de crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. Ela também está prestes a ser conduzida à presidência da União Nacional das Associações de Famílias Afetadas pela Síndrome Congênita do Zika Vírus.
Mesmo ciente de que a pandemia se trata de “algo muito grave” e que merece a devida atenção, ela reivindica mais atenção às crianças acometidas pela doença no Ceará.
“O que a gente mais quer é que os direitos básicos dessas crianças sejam garantidos: questão de leite, de fralda, de medicação. Depois da pandemia, parece que todo mundo foi esquecido, só existe Covid, mas existem as outras coisas que não pararam. Outras vidas continuam necessitando de apoio”.
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